sexta-feira, 29 de março de 2013


OUVIR A DANÇA

Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.
(José Saramago em "Ensaio sobre a cegueira")

Certa vez estava na plateia de um espetáculo de dança e comecei a ouvir que alguém do público, na primeira fileira, não parava de falar. Sussurro insistente, som o tempo todo. Eu já prestes a ficar irritada, quase indo pedir silêncio, mas era um espaço alternativo, pequeno, e qualquer movimentação minha chamaria mais atenção do que a conversa. O espetáculo terminou e olhei mais para perto para ver quem conversava: uma mulher ao lado de um homem... cego. Ele levantou-se e agradeceu a ela por ter narrado todo o espetáculo. Não se conheciam, ele provavelmente pediu esse favor à primeira pessoa que encontrou quando entrou no teatro.
Fiquei quieta por instantes. Eu não sabia que era isso que estava acontecendo, mas foi inevitável sentir uma ponta de mal-estar por ter me irritado com algo tão sensível.
O que ele viu no interior dos olhos cegos? Lembro-me de ouvi-lo dizer à "narradora": "Muito obrigado, entendi tudo direitinho". E comecei a pensar na possibilidade dessa dança imaginada, recriada, recomposta. Que elementos do palco chegavam diretamente a este homem? Trilha sonora. Calor. Talvez nuances de luz mais fortes, mais fracas, mais escuras ou luminosas. Talvez vultos, ou sombras. Talvez nem isso, nenhuma referência visual. Talvez alguns sons vindos do deslocamento dos corpos dos bailarinos. E frases pronunciadas por alguém que não é especialista em narrar situações a cegos, mas que foi pega de surpresa para descrever a ele, em volume baixo e tempo real, os desenhos criados por três pessoas em cena, num espetáculo absolutamente subjetivo onde qualquer relação concreta seria pura interpretação dos olhos de quem... vê...

Nuve (João Martinho Moura)
Que desenhos em movimento este homem terá criado num imaginário sensível?
Fui embora pensando na contradição bonita que se criava naquela situação: dança é arte que se constrói a partir da visualidade do movimento no espaço, e tudo o que se cria, significa e desenvolve a partir daí. Mas ali dança havia sido percepção, narrativa e imaginário.
A cegueira atravessou a cena. O homem provavelmente viu um espetáculo só dele, um espetáculo outro, algo que contém e/ou está contido no espetáculo que foi visto por todo o restante da plateia. Reforça-se a ideia de que a dimensão de qualquer criação está além do que se prevê, ou se vê, literalmente.
Se em qualquer obra o ponto de vista do espectador é elemento participante na construção daquilo que se assiste, ali essa relação acontecia com potência inquestionável. Ambos foram co-autores, coreografaram por cima da coreografia pronta como desenhos sobrepostos uns aos outros, camadas de olhares (sejam estes videntes ou cegos), camadas de percepção, camadas de interpretação.
Mergulho profundo num diálogo entre interior e exterior. A dança se redesenhou no pensamento. Lá ela foi outra, ímpar, pelo lado de dentro.

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escrito para a REVISTA VERNÁCULO/ 2a Edição/ março de 2013 (publicação virtual realizada pelo CEU Alvarenga)

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