sexta-feira, 24 de março de 2017

POR QUE É UM GOLPE E UM DESMONTE O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM OS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO PIÁ E VOCACIONAL?

Como artista que trabalhava em um destes Programas (no caso, o Vocacional), entendo (assim como as milhares de pessoas envolvidas neles direta e indiretamente) por dentro seus significados e modos de existir. Mas para quem não conhece, cabe contar um pouco de como as coisas estão acontecendo. Desculpem pelo texto longo, mas mesmo em tempos de síntese, algumas histórias precisam ser contadas com um pouco mais de calma.

Até 2016, mais de 300 artistas desenvolveram processos artístico-pedagógicos com mais de 8000 cidadãs e cidadãos em todas as regiões da cidade de São Paulo (em CEU's, bibliotecas, centros culturais, teatros municipais), por meio de dois Programas de Formação fundamentais na cidade: PIÁ e Vocacional. Ambos são públicos e gratuitos para a população.

Um dos pilares dos dois programas é a continuidade: os processos se relacionam de uma turma pra outra, os artistas-orientadores e artistas-educadores podem permanecer nos mesmos equipamentos por mais de dois ou três anos para criar vínculo e aprofundamento com as turmas, com os grupos, com os espaços e com as regiões. Todo o trabalho é articulado em equipes e, com grande parte da equipe em continuidade, é possível dar sequência a projetos e processos desenvolvidos de um ano pra outro e ao longo dos anos.

O Programa Vocacional é voltado a interessados a partir de 14 anos, sem limite de idade, sem pré-requisitos a não ser: desejo de estar, refletir, criar, relacionar-se, criar articulações, existir num espaço de ação. São orientações em teatro, dança, música, artes visuais e literatura, além de coletivos de estudo e ação interlinguagem. No último ano, por exemplo, grupos que relacionavam artistas-orientadores e vocacionados da cidade inteira discutiam, de modo reflexivo-múltiplo-estético, questões urgentes sobre gênero, feminismo, racismo, opressão.

O PIÁ (Programa de Iniciação Artística) recebe crianças e adolescentes de 5 a 14 anos, sem nenhum pré-requisito a não ser: vontade de estar, criar, brincar, encontrar, existir num espaço de ação. Muitas orientações acontecem, inclusive, com duas linguagens artísticas simultâneas em cada turma, entre teatro, dança, música e artes visuais. As crianças do PIÁ tem, nesse lugar de experiência, um espaço para tocar o mundo de modo sensível, lúdico e criativo.

Para os artistas-orientadores, artistas-educadores e artistas-articuladores dos Programas, as condições de trabalho sempre foram precárias: somos autônomos, temos uma média de 8 meses de contrato e absolutamente nenhum direito trabalhista.

Os editais de ambos os Programas sempre foi anual, garantindo o princípio legal de renovação de no mínimo 20% da equipe a cada ano. Desse modo, mantém-se a continuidade ao mesmo tempo que um fluxo de renovação. Quando novos profissionais chegam aos Programas e são recebidos por aqueles que já atuaram antes, é possível o contágio, a transição, o aprofundamento e a renovação de modo fluido, em consonância com todos os trabalhos que já estão em andamento.

No final de 2015, pela primeira vez a equipe conquistou um edital bienal, que foi construído por uma equipe de trabalhadores dos Programas junto ao jurídico da gestão (prefeitura) em vigor. Desse modo, a próxima equipe aprovada em edital trabalharia nas edições de 2016 e 2017, fortalecendo o princípio de continuidade e vínculo. Ao final desse prazo, seria lançado novo edital. A recontratação dos profissionais para 2017 estava condicionada a uma avaliação feita pelas equipes, pelos equipamentos que recebem os Programas e pela Secretaria de Cultura. Tal avaliação foi feita e o resultado da pontuação foi publicado em Diário Oficial no final de 2016, "visando a contratação dos mesmos para a edição de 2017".

Bem-vindos a 2017! Nenhuma notícia clara sobre o retorno dos Programas. E, em toda a Secretaria de Cultura, 43% de congelamento da verba total da pasta (que já é minúscula, menos de 1% do total da cidade). Não vou entrar, aqui, no mérito de outros desmontes já realizados pela Secretaria de Cultura em outros projetos/programas/editais, infringindo inclusive, a lei.

21 de março de 2017. As equipes dos Programas são chamadas às pressas pela manhã (e num chamamento não-oficial) para um encontro na tarde do mesmo dia, onde fomos COMUNICADOS (não há diálogo, há um recado transmitido) que "o jurídico da atual gestão considerou ilegal recontratar os artistas que trabalharam em 2016. Desse modo, nenhuma das mais de 300 pessoas que atuaram nos Programas no ano passado será recontratada. A lista seguirá a partir do último nome chamado". E mais um alarme: se a lista terminar e ainda houver vagas, será feito um novo edital. Mas e a bienalidade desse? Não vale nada??
E O FUNDAMENTO DA CONTINUIDADE, UMA VEZ QUE NÃO HAVERÁ NA EQUIPE DE 2017 NENHUM ARTISTA QUE ESTAVA NO PROGRAMA NO ANO PASSADO?
Como dar sequência aos processos se todas as pessoas contratadas são novas?

Sobre o argumento usado pela gestão, no edital consta o seguinte item:
"13.2. Os selecionados serão oportunamente contratados, de acordo com a necessidade de serviço e havendo disponibilidade orçamentária, por um período de ATÉ nove meses, admitindo-se a prorrogação, por uma única vez, por igual ou inferior período, respeitado o prazo de vigência do credenciamento a critério exclusivo da Administração. A competência para contratação dos selecionados é do Departamento de Expansão Cultural e da Divisão de Formação Artística e Cultural, da SMC."

O jurídico atual argumenta que, para haver prorrogação, nossos contratos (encerrados entre final de novembro e início de dezembro de 2016) precisariam ainda estar vigentes. Mas como prorrogar com emenda nos dois contratos, se a quantidade seguida de meses trabalhados geraria vínculo empregatício - o que não pode acontecer na nossa condição de prestadores de serviço para a prefeitura? Como um jurídico (anterior) acompanha a elaboração do edital e considera que não há irregularidades, e o outro jurídico (atual) "interpreta" o contrário? Não há ética e cumprimento dos acordos feitos?

ONDE ESTÁ ESCRITO QUE É ILEGAL OU PROIBIDO RECONTRATAR OS MESMOS PROFISSIONAIS NO SEGUNDO ANO DE VIGÊNCIA DO EDITAL? - SE NÃO EM CARÁTER DE PRORROGAÇÃO, ENTÃO, COMO NOVOS CONTRATOS.

Se fica a critério da Secretaria, admitam que é UMA DECISÃO POLÍTICA DE DERRUBAR TODOS OS PROCESSOS CONSTRUÍDOS, COMEÇAR OS PROGRAMAS DO ZERO E DESCARACTERIZÁ-LOS POR COMPLETO.

Se os pilares básicos dos Programas são destruídos, eles deixam de ser o que eram. Viram um arremedo do que foram, onde se mantém apenas os nomes e a falsa imagem (que a Secretaria está tentando construir) de que há manutenção dos programas públicos já vigentes - mas, na verdade, o que está acontecendo é um desmonte absoluto.

Vale dizer que a verba destes Programas vem tanto da Cultura quanto da Educação. Ambas pastas com enorme porcentagem congelada. Responsabilidade de quem? Do atual prefeito. O congelamento tem um objetivo claro de sucateamento estratégico de áreas essenciais para a sobrevivência da cidade, em especial aquelas que lidam com construção de pensamento e ação. E, com o argumento do congelamento, não há agora verba da Educação disponível e, portanto, os Programas não acontecerão nos CEU's. Em nenhum equipamento da Educação.

Uma parcela muito menor dos espaços públicos terão acesso aos Programas, de modo descontinuado, fragilizado, desmontado e prestes a ser qualquer outra coisa, menos aquilo que foi construído ao longo de anos de trabalho e dedicação por milhares de cidadãos, entre artistas-vocacionados-piás-educadores-orientadores-articuladores-coordenadores que passaram pelos processos e fizeram da ação, história e memória o que estes Programas são no presente.

Pelo menos eram, até a gestão Dória-Sturm que deseja transformar a Cultura da cidade num cinza desbotado e sem vida, sem relações, sem vínculos, sem criticidade, sem história, sem transparência.

Mas a arte resiste e isso não é romantismo. É a natureza da nossa ação.

Com Amor e Respeito profundos pelos Programas e pela História construída por eles,

Cristina Ávila
artista+orientadora

#PIÁeVocacionalResistem
#ContraODesmonteDaCultura
    

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