quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

     
  
Eram dois cãezinhos. Conheceram-se entre muitos e muitos cachorros de um canil público, frequentado por cães com habilidades específicas, quase artísticas, até. Viram-se. Guardaram-se na memória. Farejaram mais um pouco, aqui e ali, e tornaram a se ver meses depois; quase instantaneamente, a vida tratou de abraçar forte um ao outro. Colaram-se voluntariamente pelo lado de dentro, os cãezinhos. Traziam consigo tantas histórias: bonitas, difíceis, não resolvidas, estranhas, engraçadas. Dividiram todas, ou quase todas. Descobriram-se muito, mas não completamente, porque completamente nem tem como ser. Planejaram encontrar um quintal com casinha de cachorro para dois. Para três. Para mais, quando viessem os outros filhotes. Planejaram surpresas que ainda nem foram reveladas, planejaram planejar coisas que ainda não sabiam o que eram, mas uma hora saberiam. Vez ou outra a proximidade fez rosnar, machucar, fugir, provocar do jeito que só cachorro sabe fazer. Do cão e da cadela, o lado de fora tentou ir mas o lado de dentro queria ficar. Chegou o ciclo em que houve muitos dias e noites em que estiveram sozinhos, esparramados com cara de cachorro sem dono. Outros dias saíram pra brincar como se nada tivesse acontecido. Outras vezes se divertiram cada um em seu canil, cada um na sua rua, cada um se virando com seu faro e seu instinto. Cachorro também sonha e acorda repentinamente, na madrugada, buscando rastros, farejando aqui e ali. Às vezes ia ele farejar a porta, à espera de que ela chegasse. Às vezes era ela que subia no sofá para olhar pela janela, quem sabe se... Nos passeios diários de cada um, trombavam-se às vezes nas esquinas. Trocavam latidos curtos. Alguns latidos eram mais agudos que outros, daqueles que fazem sangrar um pouco os ouvidos. Outros eram necessários. Outros latidos eram meio roucos e, embaralhados aos sons caóticos da cidade desses tempos, tornavam-se quase incompreensíveis. Cheiravam-se e iam embora, mas seus coraçõezinhos de cachorro despertavam sempre. Um dia, já faz tempo, ele latiu baixinho uma coisa a ela. E depois, sem que ele saiba direito, ela latiu uma coisa a ele: não me despeço, porque o que existe aqui dentro é muito forte.
Abanaram o rabo e seguiram abraçados, de alguma forma.

  

2 comentários:

P0NT0 CEG0 disse...

Adorei ler esse texto e me emocionei muito com ele.

P0NT0 CEG0 disse...

Adorei ler esse texto e me emocionei muito com ele.